Sobre o romance “Infância e Travessuras de um Sertanejo”
JOÃO PORTELINHA
Mais do que para maioria dos outros escritores tocantinenses, a biografia de Juarez Moreira Filho não precisa ser vasculhada para familiarizarmo-nos com sua infância... INFÂNCIA E TRAVESSURAS DE UM SERTANEJO é a realidade romanceada da vida de um menino sertanejo vivida pelo próprio autor. Assim, para além tudo, é uma obra consagrada ao emocionante relato autobiográfico da sua infância no sertão. O grande mérito do autor, em minha opinião, é descrever-nos sutilmente este fato, sem dizê-lo que se trata na realidade da sua própria vida. Ao fazê-lo, concomitantemente nos remete de uma forma fiel a vida do sertão; seu ambiente, sua gente humilde e sua linguagem peculiar rural (daí o seu êxito).
Desde o começo de sua obra, teve a ambição de reproduzir com realismo, de maneira mais verídica, mais completa e nos mínimos detalhes, sem buscar evitar o que pudesse haver de banal ou mesmo desagradável em tudo quanto lhe impressionara sobre a vida do campo: a cor das suas raízes, a temperatura e o cheiro de sua terra, os temperos de uma cozinha maravilhosa e, acima de tudo, a idiossincrasia de sua alma sertaneja que transporta sempre para suas obras literárias.
De fato, a obra em tela é feita de observação puramente naturalista, com uma ampla parte psicológica, das ações bem como de sentimentos dos personagens que retratou. Só pelas qualidades de estilista satisfaz às leis da estética. Seu estilo é artisticamente formado, transparente e simples, fácil e claro, contudo pessoal, realista e, plasticamente expressivo. Mesmo nos seus livros posteriores a INFÂNCIA DE UM SERTANEJO, os de memórias particularmente deixam entrever a sua mestria que, aliás, de resto, todos seus leitores lhe reconhecem. Mas é nas descrições da natureza, da dor, dos sentimentos que tais qualidades se mostram mais sedutoras. Nos destinos humanos que pode descrever, sobra ainda lugar para alegria. Os quadros são frequentemente de cores muito sombrias, mas a força evocadora dos seus heróis jamais se enfraquece.
Este belíssimo romance de estréia do escritor JUAREZ MOREIRA FILHO, agora em sua 2ª edição, constitui sem dúvida um tour de force como uma pintura audaciosa e amarga da vida do sertão em que, não obstante ser dura, sofrida, ainda há espaço para o amor, o folclore alegre, descontraído e leve, sobre tudo vivido e ensinado pela Dona Isabel, no segundo capítulo do livro, um primor, que me fez retornar nitidamente ao meu passado em Angola e as leituras que fiz das obras maravilhosas do expoente máximo da literatura angolana, quiçá do espaço lusófono, Antonio Agostinho Neto, o autor da SAGRADA ESPERANÇA e de Mikail Chokolov. Um só trecho, de - O DON SILENCIOSO-, recordado, por exemplo, da obra deste grande pensador russo e Nobel de Literatura: “Na quarta semana da Quaresma, a água pôs-se a brotar nas margens do Don. Derretendo-se na superfície, o gelo tornava-se cinzento e poderoso. À noite, um murmúrio surdo vinha dos morros, indicando que iria gear, de manhã, havia ainda uma leve geada, mas lá para o meio-dia a terra apresentava-se descoberta em alguns pontos. Podia-se sentir o cheiro de março, das cerejeiras e a palha apodrecida. (...) Quanto se andava, tinha-se a impressão de se estar andar numa ravina cheia de folhas mortas, folhas amarelas que se afastam com facilidade para dar lugar à turfa que vinha de baixo, mesmo assim os pássaros cantavam. Poderíamos dizer que na INFÂNCIA E TRAVESSURAS DE UM SERTANEJO a ambiência de uma forma geral é, aqui, também, retratada minuciosamente, nos mínimos detalhes; o cheiro da terra, depois das chuvas, as amplas perspectivas sobre o verde doce e fresco circundado de rios e córregos que brilham em todo esplendor, a magia e a beleza descrita dos campos com toda sua pujança circunstanciada com toda sua fauna e flora em movimento; o barulho dos gravetos secos caindo das árvores, os carros-de-boi, as boiadas, o som do berrante nos chapadões, o grilo cantando, sapo pulando, o guará gritando, o canto dos pássaros que pulam de haste em haste fazendo algum barulho é de extrema beleza. Encontra-se aí um sentido da vida que não nasce de um gosto puramente literário, mas é a descrição de uma vivência rica do autor, plena e inteira da beleza de um sertão retratado que provavelmente já não existe mais... No entanto, tudo aí vibra no infinito e na calma do espaço limitado da fazenda Capa-Cachorro, de propriedade do pai de Dida, nos seus arredores, em Duerê e nos garimpos de cristal-de-rocha, onde o autor retrata com bastante fidelidade a dureza vivida pelo Quirino e o bambúrrio que nunca chegou. A análise dos personagens alcança uma Profundidade notável em sua rapidez e leveza, essas figuras humanas se harmonizam com a fuga das nuvens, com o cair das chuvas, com o cheiro da terra molhada, com o cheiro de estrume, o aparecimento do crepúsculo à aurora de um dia novo. Graças à tão sutil do escritor, as palavras ganham certa ressonância e sua música assemelha-se à de um violino de raios de luz e cores. As datas, os acontecimentos, os autores, os personagens, são reais, em sua maioria. O autor se compraz em descobrir a beleza humana; liberto de toda doutrina psicanalítica, permaneceu simplesmente poeta, e soube retratar e até criar a poesia pura com um traço de grandeza, de sentimento.
No entanto, se quisermos considerar esta obra tão somente no plano artístico ou literário, mesmo assim, não deixaria de ser uma obra original e importante para a pesquisa mais do que qualquer daquelas que o procederam na publicação sobre a temática do regionalismo do Norte de Goiás, hoje Tocantins.
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